Ciclo o Expressionismo Alemão: O Anjo Azul (1930)

O ANJO AZUL
blueangel_4Título Original: Der Blaue Engel
Ano: 1930
País: Alemanha
Duração: 124 min.
Direção: Josef von Sternberg
Elenco: Marlene Dietrich, Emil Jannigs, Kurt Gerron, Rosa Valetti, Hans Albers, Eduard von Winterstein, Hans Roth, Roland Varno, Reinhold Bernt.
Sinopse:
Um respeitado professor descobre que alguns dos seus alunos frequentam um clube noturno e decide confrontá-los no local. Ali conhece a cantora Lola Lola, que o cativa de tal forma que o professor regressa no dia seguinte só para a ver. À medida que se apaixona por Lola, esta exerce cada vez mais influência sobre o professor, a ponto de ele fazer tudo o que a cantora quer.

Com roteiro de Carl Zuckmayer, Heinrich Mann, Karl Vollmöller e Robert Liebmann, baseado no livro “Professor Unrat”, de Heinrich Mann, este clássico do começo do cinema falado é referência obrigatória do expressionismo alemão, um filme de imagens poderosas e detalhes psicológicos complexos. O drama realizado por Josef von Sternberg, que revela bem a sua mestria a jogar com luzes e sombras, deu a conhecer a atriz Marlene Dietrich (1901-1992), que aqui tem o seu primeiro grande papel como protagonista, tendo sido catapultada para a fama como estrela internacional, além de consagrar Emil Jannings como o maior ator de sua época e solidificar a carreira do diretor Josef von Sternberg. Como curiosidades refira-se que Sternberg decidiu aceitar filmar na Alemanha após uma série de fracassos comerciais nos Estados Unidos e, tal como era comum na época, filmou as versões alemã e inglesa do filme em simultâneo. Os destaques ficam para o perfil psicológico dos personagens e para a atuação sensual e perversamente ingênua de Dietrich. Foi refilmado em 1959 por Edward Dmytryk, com May Britt e Curt Jurgens.

Um retrato da Alemanha pouco antes do nazismo

Alunos de ensino médio trocando figurinhas durante a aula. É com este cenário que começa a lenta, porém crescente, degradação da vida do professor de artes e ciência, Immanuel Rath (Jannings). Quando este descobre serem as figurinhas fotos de mulheres semi-nuas conseguidas na casa de espetáculos Anjo Azul, que seus alunos frequentam, Rath vai lá tirar satisfações com os garotos, e acaba conhecendo a cantora de cabaré Lola Lola (Dietrich).

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A partir daí, o antes pacato e até certo ponto inocente professor Rath se apaixona por Lola Lola, a tal ponto em que pede a moça em casamento para proteger-se dos insultos de seus alunos, o que o leva a ser demitido. Somos então apresentados ao casal, cinco anos mais tarde, já num estado crítico do relacionamento. Sem trabalho e sem dinheiro, Rath acompanha a esposa nos espetáculos de vaudeville, vendendo fotos semi-nuas dela para a platéia (coisa que ele jurara jamais fazer), e trabalhando como palhaço-assistente do dono do espetáculo, o ilusionista Kiepert (Kurt Gerron). Com o espírito visivelmente morto e preso a uma vida longe do romancismo jovial de quando conheceu Lola Lola, Rath atinge o ápice da degradação quando se vê obrigado a se apresentar no Anjo Azul, em sua cidade natal. Em meio aos risos da platéia e uma suposta traição de Lola Lola, o professor surta e acaba por retornar à sua antiga sala de aula no meio da noite, numa busca infrutífera pela nostalgia de sua vida passada.

Desde seus primórdios o cinema buscava suprir a impossibilidade de reproduzir fisicamente o som através de construções imagéticas que articulassem a representação sonora.  Foram diversas as obras do período silencioso que se destacaram justamente pelo uso criativo do som e de suas características específicas. Até mesmo a estrutura musical serviu de inspiração para a configuração da estrutura narrativa fílmica. Em 1927, por fim, o cinema conta com a presença física do som. Foram várias as tentativas de acoplar som e imagem até o desenvolvimento do Vitaphone.  Apenas três anos depois do surgimento do cinema sonoro, em 1o de abril de 1930, estreou o filme que tornaria Marlene Dietrich – até então quase desconhecida – uma atriz famosa: “O Anjo Azul” (Der Blaüe Anger), com direção de Josef von Sternberg.

Adaptado do romance “Professor Unrat” de Heinrich Mann, esse clássico do cinema alemão sobreviveu muito bem à passagem do tempo. Há diversas considerações a serem feitas sobre o filme. Dentre elas, as características expressionistas encontradas principalmente na cenografia e na fotografia – que abusa do contraste e uso de sombras – a construção dos personagens que sutilmente extrapola os estereótipos do ingênuo solitário e da femme fatale – tanto Lola Lola quanto Rath têm seus desejos, frustrações e orgulho e parece existir, em alguns momentos, uma sincera afinidade entre os dois, sentimento este que não se sustenta, pois Rath a tinha como objeto idealizado de contemplação e a vida ao lado de Lola em nada corresponde aos seus sonhos – a maneira como a degradação de Rath é anunciada pela figura de um palhaço triste do grupo que constantemente encara o professor com olhar melancólico, dentre outras questões. A atmosfera escura e mórbida que o filme apresenta reflete, curiosamente, um momento peculiar da história alemã: a administração Weimar, logo antes da ascensão do nazismo, quando as consequências da quebra na bolsa de valores de Nova York tiveram um impacto claustrofóbico no país, deixando seis milhões de desempregados e uma inflação avassaladora. A história de Rath reflete bem o clima de desespero e frustração da época.

Tecnicamente, o filme permanece até hoje surpreendente. Além da triste fotografia em claro/escuro do mestre Günther Rittau, da direção inspiradíssima de Josef von Sternberg e da grande atuação de Emil Jannings, talvez o maior ator alemão de todos os tempos,  “O Anjo Azul” não apenas se encaixa na lista dos maiores clássicos do cinema, mas também na seleta lista dos filmes que de uma maneira ou de outra contribuíram para o desenvolvimento da indústria cinematográfica como um todo. A criativa utilização do som em “O Anjo Azul” representa um triunfo técnico notável, ainda mais por ter sido feito no começo do cinema falado.

Uma importante contribuição para o desenvolvimento do cinema sonoro

O advento do cinema sonoro no final da década de 20 acarretou diversas modificações nos esquemas de produção, receios e expectativas no que diz respeito aos efeitos que essa evolução técnica traria à linguagem cinematográfica já consolidada no momento. A produção inicial centra-se maciçamente nos talking films, filmes repletos de diálogos, tendo claramente a preocupação de mostrar ao espectador o novo recurso. Além disso, os filmes preocupam-se em reproduzir todos os ruídos presentes em cena, indiscriminadamente, sem critério de seleção. Com o tempo, todavia, o “novo recurso” passa a ser explorado cada vez menos como inovação tecnológica e sua utilização na narrativa fílmica alcança novos contornos.

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“O Anjo Azul”, inserido nessa conturbada fase de transição, apresenta certo domínio quanto à concepção sonora e sua inserção no discurso fílmico, de modo que os efeitos obtidos em muito contribuem para a construção dramática. Nesse sentido, faz-se necessário discorrer – ainda que brevemente – sobre algumas passagens do filme. A seqüência inicial do filme apresenta a cidade ao espectador. O primeiro plano mostra-a de cima: telhados de casas e sons de patos. Segue então a imagens dos patos que são guardados num chiqueirinho e em seguida uma mulher que sobe a proteção de uma vitrine para lavar-lhe o vidro. Duas notas a serem feitas: o som dos patos, já presente no primeiro plano do filme – que ainda não os tinha apresentado com imagem – permanece no plano da mulher lavando a janela, contribuindo assim para a continuidade espaço-temporal dessa pequena seqüência de abertura. Outra questão que merece atenção no plano da mulher subindo a proteção da vitrine é que, por trás do vidro que irá lavar, se encontra um pôster de Lola Lola. Essa informação imagética acrescenta uma nova dimensão ao plano. Sternberg agrupa, num só plano, uma informação sobre a cidade, a utilização de ruídos – patos, proteção da vitrine subindo e água que a mulher joga no vidro – e por fim a introdução da personagem Lola Lola. A apresentação da personagem é um dado interessante, pois anuncia um tipo de articulação que irá se repetir em outros momentos no filme: a exploração de ruídos naturalistas – sons de ambiência coerentes com a imagem – muito bem inseridos na estrutura narrativa, pois não ficam jogados, chamando a atenção para si próprios como efeito, sendo que sua função se interliga com outros elementos presentes no discurso.

Ainda sobre essa abordagem, há no filme uma cena na qual o prof. Rath se encontra no camarim de Lola. Dentre os móveis e objetos do ambiente encontra-se um piano. Ninguém o toca, assim não teríamos o som do piano. Todavia, no sentido de explorar o ruído que um simples esbarrar nas teclas causaria, tem-se Lola Lola “precisando” apoiar-se no teclado do piano para pegar um chapéu. Desta forma, “O Anjo Azul” mostra-se interessado em explorar ao máximo o “novo recurso”, reproduzindo sons que poderia-se argumentar desnecessários para a narrativa, mas o faz com tamanha sutileza e tão bem costurados na narrativa que essas escolhas só vem somar no resultado final. Dentro desta seqüência do camarim e numa organização mais articulada, há o ruído de uma mala caindo no chão. Lola se apoiara em duas malas para alcançar algo em cima do guarda-roupa do seu quarto – cômodo que fica no andar de cima de seu camarim. Uma das malas acaba escorregando e tocando o chão. O ruído chama a atenção de Rath – sentado no camarim, onde também se encontra um de seus alunos escondido – que inclina o olhar para cima em direção ao quarto de Lola Lola. A distração de Rath é suficiente para que o aluno saia momentaneamente de seu esconderijo e coloque uma calcinha de Lola no paletó do professor, que será assim obrigado a retornar ao Anjo Azul para devolver – muito envergonhado – a peça à cantora e pegar seu chapéu que havia, na confusão toda, esquecido lá.

Nos exemplos acima, a força da articulação entre som e imagem – no que concerne construção e desenvolvimento da narrativa – não se encontra no fato de que, sem a possibilidade de representação física do som seria inconcebível propor tais cenas. Muito pelo contrário, todas elas apresentam a fonte sonora e estão bem articuladas a respeito da montagem. O mais notável é o modo como os ruídos são inseridos na narrativa: sempre justificáveis não somente como componente da realidade – nesse sentido, Dietrich poderia ter esbarrado em vários outros objetos apenas para que fossem escutados – mas principalmente como componente do universo fílmico capaz de interagir diretamente na narrativa e seu fluxo. Nesse viés, um exemplo de como o som interage com outros elementos é o apito de navio que se escuta quando Rath está na rua – curiosamente escuta-se duas vezes, na mesma rua, numa delas o prof. indo para o Anjo Azul e na outra, já no final do filme, ele fugindo de lá em direção a escola. O apito acusa a presença de um navio, ou seja, a cidade na qual a história se passa seria uma cidade de porto. Essa informação sonora encontra embasamento na decoração da casa de espetáculos, que conta com redes, âncoras, barris, estátuas de gaivotas, cordas, bóias de salva-vidas, dentre outros apetrechos marítimos. A noção de espaço off é, aliás, uma das mais exploradas através da utilização do som em “O Anjo Azul”. Os exemplos mais notáveis ocorrem dentro da sala de aula do prof. Rath e no camarim de Lola Lola.

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Numa das cenas, Rath exige de seus alunos uma tarefa escrita e, enquanto estes iniciam o exercício, caminha pela sala e abre uma das janelas. Ao abrir, o ambiente é tomado por uma melodia – que parece ser todo composto por vozes femininas – indicando a presença do que possivelmente seria uma aula de canto em outra sala ou no pátio da escola. Ao descobrir uma foto de Lola Lola com um de seus alunos, o prof. se dirige até a janela e a fecha, interrompendo totalmente a música e dizendo que irá tirar satisfações sobre a foto mais tarde. O mesmo ocorre no camarim de Lola. Toda vez que alguém entra – ou seja, que abre a porta – tem-se pouca ou nenhuma informação visual do espaço que se encontra para além, entretanto, o ambiente é tomado pelo som desse espaço. Assim, é possível escutar as músicas das apresentações e ruídos da platéia. Ambos os exemplos têm uma característica em comum: o fato de janela e porta apresentarem-se como fronteira isolante entre o dentro (“silêncio”) e o fora (“barulho”), no que parece ser uma demonstração de controle de total controle do som.

Há, todavia, certas incongruências – tendo por base a representação realista a qual o filme se propõe – quanto a esse controle. Primeiramente, não parece possível tanto a janela quanto à porta isolarem totalmente os ambientes da ruidagem externa. Tal incompatibilidade aparece na cena em que a algazarra feita pelos alunos para zombar de Rath extrapola a sala de aula e é escutada no corredor da escola. O termo incompatibilidade parece caber nesse caso, pois o barulho toma o corredor – um pouco mais abafado, é verdade – mas não se apresenta como extra diegético. Desse modo, existiria então diferença entre a porta do camarim de Lola Lola e a da sala de aula, partindo do pressuposto de que o isolamento é tanto do espaço apresentado com imagens para o espaço off como no contrário. Outra articulação sonora questionável dentro desses parâmetros é o corte brusco na cena em que Rath, pela primeira vez no Anjo Azul, descobre o tal aluno que estava escondido no camarim e sai correndo atrás dele. Durante a pequena perseguição – iniciada ainda dentro do camarim – escuta-se Lola ao fundo cantando, o que já é possível, levando em conta que a porta fora, um pouquinho antes, aberta pelo triste palhaço. Rath corre atrás do aluno até a rua, onde o perde de vista. A música, nesse momento, é bruscamente interrompida e não se escuta ruídos de aplausos – o que traria o sentido de que fora cortada porque na verdade estava já finalizada a apresentação de Lola. O intuito do corte é evidente: possibilitar a escuta da fala do professor, que grita para que o aluno pare, reiniciando sua perseguição.

Esse tipo de montagem – na qual um som é cortado ou ao menos diminuído para que se possa escutar a fala do personagem – é comumente utilizado. Costuma-se priorizar uma audição bem definida do diálogo, mas há exceções deste uso. Há vários filmes de Jean-Luc Godard – “Je Vous Salue Marie” (1985), por exemplo – nos quais não há cerimônias na inserção da trilha musical na narrativa, comprometendo, por vezes, o entendimento do diálogo, sendo este um efeito pretendido pelo diretor. As músicas da trilha do filme, sendo a maioria um elemento diegético, conta com a imagem de músicos nas cenas em que ocorre – exemplo: pianista na cena da comemoração do casamento de Rath e Lola e um flautista no cabaré. Todavia, aparece também como extra diegética, como na cena final na qual Rath caminha tortuosamente até sua antiga sala de aula onde, ao som de uma melodia que traz levemente a idéia de sublimação, e morre agarrado a sua mesa.
Nem todo ruído conta com a presença de sua fonte sonora, apesar de ser o mais comum durante todo o filme. Na cena em que Lola Lola e Rath tomam café da manhã juntos escuta-se o som de pássaros que não aparecem em cena, e também o badalar de um relógio. A primeira associação feita é que o badalar remete ao relógio já mostrado anteriormente. Todavia, na cena seguinte – Rath chegando à escola – tem-se outro relógio na fachada da escola, que poderia ser a fonte sonora das baladas um pouco antes ouvidas.

A concepção sonora de “O Anjo Azul” demonstra o esforço de Josef von Sternberg em integrar o som no discurso fílmico de modo a explorá-lo como ferramenta dramática, sendo notável o modo que o relaciona com os demais elementos da narrativa.

IMDb: http://www.imdb.com/title/tt0020697/

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