Filmes: Os Incompreendidos (1959)

OS INCOMPREENDIDOS

Título Original: Les Quatre Cents Coups
País: França
Ano: 1959
Duração: 99 minutos
Direção: François Truffaut
Elenco: Jean-Pierre Léaud, Albert Rémy, Claire Maurier, Guy Decomble, Patrick Auffay, Georges Flamant, Pierre Repp, Daniel Couturier, Luc Andrieux.
Sinopse: Por conta de uma rebeldia natural e incontrolável, o adolescente Antoine Doinel tem problemas de relacionamento com a mãe e o padrasto, e se sente perseguido pelos professores da escola. Ele mata aula para ficar andando pelas ruas com os colegas, mas um dia quando comete um roubo, é preso e mandado para um reformatório para jovens delinquentes.

Os Incompreendidos teve seu lançamento no Festival de Cannes no dia de hoje, 4 de maio, em 1959. François Truffaut, então um dos mais conhecidos críticos da revista francesa Cahiers du Cinéma, faz sua estreia na direção com uma obra-prima irretocável que se tornou um marco da Novelle Vague.

François Truffaut produziu Os Incompreendidos com George Charlot e foi o autor do roteiro junto com Marcel Moussy. O diretor foi buscar inspiração em suas memórias de infância e adolescência e também em elementos de outras obras francesas, especialmente Zero de Conduta (Zéro de conduite, 1933), de Jean Vigo. De maneira elegante e envolvente, o diretor constrói uma narrativa de passagem e amadurecimento que mostra o protagonista, Antoine Doinel, de 12 anos, se rebelando contra o sistema, representado ora pelo padrasto e a mãe biológica (que ele descobre ter um caso com outro homem), ora pelo professor que o acusa de cometer plágio em um trabalho escolar. Quando Antoine comete um roubo na empresa onde seu padrasto trabalha, ele acaba sendo preso e passa a noite na cadeia. Julgado, é mandado para um instituto para jovens delinquentes onde uma psicóloga tenta descobrir os motivos de tanta rebeldia.

O ator Jean-Pierre Léaud corre pela praia seguido pela equipe de filmagem para a cena final de Os Incompreendidos, de 1959. O filme marcou a estreia de François Truffaut na direção e foi o primeiro de cinco filmes sobre Antoine Doinel, personagem inspirado na vida do próprio cineasta.

Para melhor compreensão do protagonista é interessante mergulhar na biografia de Truffaut como um jovem sem rumo que assim como Antoine Doinel, Truffaut nunca conheceu seu pai biológico. Como nasceu fora do casamento, seu nascimento teve que permanecer em segredo por causa do estigma da ilegitimidade. Ele foi registrado como “criança nascida de pai desconhecido” nos registros do hospital e cuidado por uma enfermeira por um longo período de tempo. A mãe de Truffaut, Janine de Montferrand, casou-se com Roland Truffaut, que o adotou como filho e lhe deu o sobrenome. O casal teve outro filho, mas que morreu logo após o nascimento. Esta experiência traumática fez com que o casal projetasse suas dores no garoto e o tratassem com negligência e distanciamento.

François Truffaut foi enviado para viver com a avó e só retornou ao convívio dos pais após a morte dela quando ele tinha 8 anos. Com o avó ele aprendeu a amar filmes e livros, e foi com essa idade que ele assistiu seu primeiro filme, Paradis Perdu, de 1939, de Abel Gance. Ele matava aula para ir ao cinema, na maioria das vezes entrando escondido porque não tinha dinheiro para pagar as sessões. Desprezado pelos pais, ele passava o máximo possível do tempo fora de casa, com os amigos, entre eles Robert Lachenay, que serviu de inspiração para o personagem René Bigey em Os Incompreendidos e mais tarde trabalhou como assistente em alguns filmes de Truffaut. Aos 14 anos, depois de ser expulso de diversas escolas, decidiu abandonar os estudos e buscou asssitir e ler todos os filmes e livros que pudesse. Ele passou a frequentar bibliotecas e cinematecas, entre elas a de Henri Langlois, através da qual teve acesso a filmes de John Ford, Howard Hawks, Nicholas Ray e Alfred Hitchcock.

Apesar da forma como seus pais o tratavam – eles chegaram a viajar no Natal deixando-o sozinho em casa, e as lembranças que guardou de ser maltratado pela mãe, Truffaut amava a ambos e tentava demonstrar esse amor cuidando da casa da melhor maneira que conseguia, geralmente com resultados catastróficos que o faziam ser castigado várias vezes. Esse sentimento é percebido em Antoine na forma como Truffaut mostra o garoto convivendo com os pais em um minúsculo apartamento em Paris. Ir com eles ao cinema, é para o menino uma experiência edificante e uma das raras vezes em que demonstram ser uma família de verdade. Quando ele descobre que a mãe tem um amante ao vê-la na rua com outro homem durante uma escapada da escola, cria-se um novo laço entre mãe e filho, onde um guarda o segredo do outro, e a mãe subitamente passa a tratá-lo com mais zelo, inclusive dando banho, e ganhando a confiança dele.

Mas assim como Antoine, que ameaça embarcar em uma vida de crimes ao roubar uma máquina de escrever do escritório onde seu padrasto trabalha e, não conseguindo vendê-la, é apanhado tentando colocá-la de volta, a vida teria sido bem cruel também para Truffaut se ele não tivesse conhecido o renomado crítico de cinema André Bazin, que não só se tornou uma espécie de pai espiritual para ele, como por diversas vezes o ajudou a livrar-se de dificuldades financeiras e mesmo processos criminais por pequenos delitos que cometia, inclusive ao livrá-lo da prisão após sua tentativa de abandonar o exército francês, ao qual ingressou em 1950, aos 18 anos. Bazin usou seus contatos políticos e se encarregou de oferecer a ele um emprego em sua revista de cinema recém-fundada, a Cahiers du Cinéma. Na revista, Truffaut tornou-se um crítico implacável do cinema francês de sua época, o que o fez ser odiado por cineastas e tornar-se persona non grata no Festival de Cinema de Cannes de 1958 – ele foi o único crítico francês que não foi convidado. No ano seguinte, porém, Truffaut concorreu à Palma de Ouro com Os Incompreendidos. Ele não venceu, mas ganhou o prêmio de melhor direção. O filme também foi indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Original, além de conquistar vários prêmios em outros festivais e se tornar um grande sucesso comercial na França.

Truffaut dedicou Os Incompreendidos ao seu mestre André Bazin, que faleceu pouco antes do início das filmagens. Graças ao prestígio como crítico de cinema, ele conseguiu reunir no filme uma pleiade de grandes nomes do cinema francês da época em participações-relâmpago: Jeanne Moreau, Jean-Claude Brialy, Philippe De Broca, Jacques Demy, Jean-Luc Godard e Jean-Paul Belmondo – sendo os dois últimos apenas como vozes ouvidas durante o filme. O sucesso de crítica e de público de Os Incompreendidos ajudou a consolidar a carreira de Truffaut como cineasta, além de definir os modelos que seriam adotados por outros cineastas com relação à Novelle Vague, movimento que ganhou ainda mais força quando Godard lançou no ano seguinte Acossado (À bout de souffle, 1960) e Truffaut lançou Jules e Jim – Uma Mulher Para Dois (Jules et Jim, 1962), seu terceiro longa-metragem.

Os Incompreendidos é mais do que uma narrativa de passagem e amadurecimento. É o início de uma saga cinematográfica personalíssima, subjetiva e intimista que atravessou duas décadas, com Antoine Doinel retornando em mais quatro filmes, todos eles interpretados por Jean-Pierre Léaud que mostram a evolução do personagem através dos anos: Antoine et Colette (curta-metragem de 1962 incluído na antologia de contos Love at Twenty), Beijos Proibidos (Baisers Volés, 1968), Domicílio Conjugal (Domicile Conjugal, 1970) e O Amor em Fuga (L’Amour en Fuite, 1979). Com Antoine, Truffaut construiu um alter ego no qual projetou muito de si mesmo, e com Jean-Pierre Léaud ganhou o cúmplice ideal para externar na tela seus anseios e sentimentos como cineasta e contador de histórias. O ator atuou também em outros filmes dirigidos por Truffaut fora do chamado “Ciclo Antoine Doinel”: As Duas Inglesas e o Amor (Les Deux Anglaises et le Continent, 1971) e A Noite Americana (La Nuit américaine, 1973). Léaud era um garoto comum de 14 anos que fez o teste para o papel depois de ver um panfleto de recrutamento mas que durante a produção do filme revelou sofisticação natural e compreensão instintiva de como atuar diante da câmera que impressionaram Truffaut profundamente. Leáud também firmou uma parceria com Jean-Luc Godard nos anos 60 que incluem filmes como O Demônio das Onze Horas (Pierrot le Fou, 1965), Masculino-Feminino (Masculin Féminin) e Alphaville, ambos de 1966.

Não é nem um pouco comum que um cineasta faça sua estreia nas telas logo com uma obra-prima, mas a exemplo do que Orson Welles fez com Cidadão Kane, François Truffaut conseguiu repetir esse feito com Os Incompreendidos. O filme é considerado não só um dos pilares da Novelle Vague, como é frequentemente incluído nas listas dos melhores filmes já produzidos pelos mais conceituados veículos de imprensa e associações de cinema.

IMDb: https://www.imdb.com/title/tt0053198/.

2 Respostas

  1. Mario Catucci Jr. | Responder

    Olá, deixo meu obrigado pela leitura acessível e interessante deste seu blog, que retrata obras, por exemplo hoje, como Os Incompreendidos, um pilar do cinema moderno. Nunca a vi, mas fico mais motivado depois do seu texto. Parabéns!

    Ganhou um leitor, meu amigo.

    Até outra vez.

    1. Obrigado pelas suas palavras gentis. Isso é um incentivo para continuar seguindo em frente com o blog e me esforçando cada vez mais para trazer mais informação e o melhor conteúdo possível. Volte sempre!

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