Atrizes: Hattie McDaniel

Hattie McDaniel no rádio, em 1947. Foto Gilles Petard/Redferns.

Hattie McDaniel derrubou uma das barreiras mais difíceis para um artista negro no seletivo mundo do entretenimento americano, e o fez justamente ao interpretar uma escrava em um drama sobre a Guerra Civil em um período de forte segregação racial e preconceito como eram os anos de 1930 e 1940. A atriz fez história na noite de 29 de fevereiro de 1940 quando se tornou o primeiro artista negro, homem ou mulher, a receber um Oscar como Melhor Atriz Coadjuvante por sua atuação de Mammy, a babá de Scarlett O’Hara em E o Vento Levou, papel pelo qual ela é frequentemente lembrada.

Além de atriz de cinema, na juventude Hattie McDaniel foi artista de vaudeville e cantora, chegando a gravar mais de uma dezena de canções de blues entre 1926 e 1929. Ela também se tornou a primeira artista negra a cantar no rádio, onde estrelou uma série bastante popular nos anos 40, além de atuar nos primórdios da televisão como protagonista de um seriado de sucesso. Embora tenha aparecido em mais de 300 filmes, recebeu créditos na tela por apenas 83. Hattie McDaniel foi homenageada com duas estrelas na Calçada da Fama de Hollywood: uma por sua contribuição para o rádio no número 6933 da Hollywood Boulevard, e outra no número 1719 da Vine Street por sua contribuição à indústria do cinema. Em 2006, ela foi homenageada com um selo pelo serviço postal dos Estados Unidos.

Hattie McDaniel nasceu no dia de hoje, 10 de junho, em 1895.

Uma vitória histórica

Qualquer um que tenha assistido a E o Vento Levou deve lembrar de Hattie McDaniel. Ela era uma verdadeira força da natureza em cena e uma das principais personagens no filme que fazia com que as cenas evoluíssem. Quando a atriz percebeu que seu próprio estúdio não estava muito empenhado em apresentar o seu nome como uma das indicadas ao Oscar, Hattie juntou uma pilha de páginas e recortes de jornais e revistas com críticas que a elogiavam e foi ao escritório do produtor do filme, David O. Selznick, e colocou a pilha inteira em sua mesa. Selznick então submeteu o nome da atriz para consideração pela Academia, e ela acabou recebendo uma indicação ao Oscar na categoria de atriz coadjuvante, junto com sua colega de elenco Olivia de Havilland.

Na cerimônia de entrega dos prêmios, enquanto Hattie McDaniel ficou na frente de seus colegas brancos no jantar de gala na boate Cocoanut Grove, ela era a imagem do orgulho e da alegria extravasando emoção e lágrimas. Mas para que isso acontecesse, a atriz precisou percorrer um longo e tortuoso caminho na carreira. Até mesmo a sua simples presença na cerimônia na qual ela faria história foi difícil para Hattie conseguir. Como observa a biógrafa Jill Watts em seu livro Hattie McDaniel: Black Ambition, White Hollywood, naquela época, o Oscar não era realizado em um grande teatro ou auditório. O Cocoanut Grove era um anexo do Ambassador Hotel, um hotel de luxo só para brancos que não seria integrado até 1959, e o produtor David O. Selznick teve que pedir favores aos administradores apenas para que Hattie McDaniel tivesse permissão para comparecer à cerimônia.

Hattie McDaniel recebe seu Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por E o Vento Levou das mãos da atriz Fay Bainter.

Embora Hattie McDaniel recebesse permissão para comparecer à cerimônia, ela não teve permissão para sentar à mesa de E o Vento Levou com o produtor David O. Selznick e seus colegas de elenco brancos também indicados, Vivien Leigh, Clark Gable e Olivia de Havilland. Em vez disso, ela estava em uma mesa menor e isolada bem no canto da sala, junto com seu acompanhante, F.P. Yober (um homem negro), e seu agente branco, William Meiklejohn. Ainda assim, sua vitória foi recebida com aplausos emocionados quando seu nome foi anunciado. “Espero sinceramente ser sempre um crédito para minha raça e para a indústria cinematográfica”, disse ela, chorando. “Meu coração está cheio demais para dizer como me sinto”. A discriminação continuou também após a cerimônia de premiação quando seus colegas foram comemorar em um clube de “não-negros”, onde Hattie também teve a entrada negada.

Acompanhe o discurso emocionado de Hattie McDaniel ao receber seu prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante na 12ª cerimônia de entrega do Oscar, em 1940.

Foi a primeira vez na história da premiação (instituída em 1929) que um Oscar era entregue a um artista negro, homem ou mulher, feito repetido somente em 1964 quando Sidney Poitier venceu na categoria de ator principal. Houve quem acreditasse na época que a vitória e o trabalho pioneiro de Hattie McDaniel e de outros artistas de sua geração acabariam levando a mudanças reais e significativas na indústria cinematográfica. A realidade, no entanto, foi muito menos gentil com a atriz. Embora ofertas de trabalho não lhe faltassem, e Hattie trabalhou de forma constante ao longo de sua carreira, ela não conseguiu escapar de ser rotulada para atuar em papéis semelhantes ao de “Mammy”, com a grande maioria de seus personagens sendo algum tipo de empregada doméstica.

Hattie McDaniel também enfrentou críticas de ativistas negros, incluindo membros da NAACP, por seguir perpetuando estereótipos no cinema, não porque ela quisesse mas simplesmente porque não conseguia ser escalada para qualquer outro tipo de personagem. Como qualquer grande artista consciente de seus talentos, Hattie McDaniel procurava desafios, mas sua ambição artística era frequentemente bloqueada pelo racismo e pelo sexismo vigente na Hollywood de seu tempo. “Quando você deixa de querer, você deixa de viver. Assim como quando ganhei o Oscar”, explicou ela: “Você se senta e pensa que agora tem tudo, tudo o que deseja. Mas é claro que você não tem”. Até mesmo seu Oscar histórico teve um final indigno: após a morte da atriz, e seguindo um desejo dela, o Oscar acabou indo para a Howard University onde desapareceu no final dos anos 1960, para nunca mais ser visto.

Hattie McDaniel com seu prêmio de melhor atriz coadjuvante por E o Vento Levou: como era prática na época, os vitoriosos nas categorias de atriz/ator coadjuvante não recebiam uma estatueta como os vencedores nas categorias principais, mas sim uma espécie de placa.

A vitória de Hattie McDaniel no Oscar também não se traduziu em mais ou melhores papéis para ela ou outros atores negros da sua geração, já que os estereótipos continuaram vigentes na indústria de cinema e os atores negros continuaram a ser excluídos de papéis principais ou de papéis com mais chances de conseguir uma vitória no Oscar. Tanto que nenhum outro artista negro ganharia um Oscar em qualquer categoria novamente até que Sidney Poitier ganhou o prêmio de melhor ator por Uma Voz nas Sombras, de 1963. Houve um intervalo de 51 anos entre a vitória de Hattie McDaniel e a vitória seguinte de Whoopi Goldberg em Ghost – Do Outro Lado da Vida, de 1990, na mesma categoria que a premiou, a de Atriz Coadjuvante. Somente em 2002, com Halle Berry por A Última Ceia que o Oscar de Atriz Principal foi entregue a uma atriz negra.

A juventude e o começo de carreira

Apesar de nascer 30 anos depois da Guerra Civil, as mazelas dos conflitos e os horrores da escravidão não eram alheios à Hattie McDaniel. Nascida em 10 de junho de 1895, em Wichita, no Kansas, ela era a caçula de 13 irmãos. Seus pais eram ex-escravos. A mãe, Susan Holbert, havia se tornado uma cantora de música gospel, e o pai, Henry McDaniel, lutou na Guerra Civil com as 122ª Tropas de Cor dos Estados Unidos, uma batalhão formado basicamente por afrodescendentes. Henry lutou pela União na brutal Batalha de Nashville em 1864, durante a qual foi gravemente ferido por um projetil que estilhaçou a sua mandíbula e abriu uma ferida perpétua em sua boca. Apesar das dores, ele continuou trabalhando em serviços braçais após a guerra para sustentar a família. Quando o último dos filhos do casal, Hattie, nasceu em 1895, a família havia mudado para Wichita.

Segundo a atriz, sua família era tão pobre que ela nasceu desnutrida, pesando apenas três quilos e meio. Eles se mudaram para Denver, onde Henry, cada vez mais enfermo, finalmente conseguiu receber uma pequena pensão do governo dos Estados Unidos por seu serviço militar, após décadas de tentativas. Embora a família McDaniel muitas vezes passasse fome, eles eram unidos e criativos. Hattie desde cedo demonstrou talento para o canto e a dança e cresceu cantando no coral da igreja e frequentando escolas integradas. Na foto ao lado, Hattie é o destaque em uma foto de escola, tirada quando ela tinha 7 anos. Ela também ajudava o pai a preencher os questionários de pedidos de revisão do seu auxílio por invalidez. Em 1908, um lacaio do governo escreveu de forma enlouquecedora que não poderia aumentar a pensão de Henry porque não havia prova oficial de que ele havia atingido a idade de 70 anos. “É impossível para mim fornecer um registro de meu nascimento”, Henry respondeu sucintamente. “Eu era um escravo.”

Apesar das constantes dificuldades e de toda a discriminação, as crianças McDaniel se tornaram pioneiras do entretenimento na área de Denver, montando peças e apresentações para membros da comunidade negra. Em 1914, Hattie e sua irmã Etta, anunciadas como McDaniel Sisters Company, montaram um show de menestréis do qual também participava seu irmão Otis. Naquela época, a ágil e esperta Hattie desenvolveu uma personagem maluca muito semelhante à sua “Mammy” de E o Vento Levou, mais como uma crítica cultural do arquétipo racista pelo qual um dia ela se tornaria famosa. Após a morte de Otis em novembro de 1916, a trupe começou a perder dinheiro e Hattie não conseguiu nenhuma grande chance no mundo artístico até 1920 quando ingressou no Melody Hounds de George Morrison, um show itinerante de atores negros, permanecendo até 1925. A partir da metade da década, Hattie transformou-se em uma cantora de rádio e revezava seus talentos entre pisar nos palcos do circuito de vaudeville negro e escrever e gravar canções de blues, incluindo “Boo Hoo Blues” e “Dentist Chair Blues”, além de aceitar empregos como empregada doméstica ou cozinheira para sobreviver.

Hattie McDaniel jovem quando iniciou sua carreira artística em Denver, ao lado dos irmãos.

Em 1929, Hattie McDaniel estava viajando pelo país como integrante do coro da companhia de turismo do célebre Florenz Ziegfeld, de seu espetáculo Show Boat, quando a quebra do mercado de ações arrasou a economia do país como um verdadeiro tsunami e forçou o famoso produtor a dispensar a maioria de seus artistas. Presa na desconhecida Milwaukee sem um tostão, Hattie conseguiu um emprego como atendente de banheiro na boate Sam Pick’s Suburban Inn. Em certa ocasião, todos os cantores haviam saído antes do fechamento e a administração precisava de uma última atuação para fechar a noite. Hattie se ofereceu para se apresentar com a banda local e apesar da relutância do gerente da boate, colocou a casa abaixo com sua magnífica interpretação de “St. Louis Blues”. Contratada na hora, ela foi o grande destaque da casa por dois anos antes de o estabelecimento fechar durante a Depressão. Desempregada outra vez e com apenas 20 dólares na bolsa, Hattie McDaniel pegou um ônibus com destino a Hollywood para se juntar a seu irmão Sam e às irmãs Etta e Orlena.

O sucesso no cinema e no rádio

Em 1931, seu irmão Sam McDaniel conseguiu para Hattie um emprego no rádio como “Hi-Hat Hattie”, uma empregada mandona que frequentemente “esquece seu lugar”. O programa tornou-se bastante popular, mas seu salário era tão baixo que ela teve que continuar trabalhando como empregada doméstica para se sustentar. Hattie fez sua primeira aparição (sem créditos) no cinema no faroeste da Fox Film Corporation, Destino Rubro (The Golden West, 1932), no qual interpretou uma empregada doméstica. Sua segunda aparição veio no filme de grande sucesso de Mae West, a comédia musical da Paramount, Santa Não Sou (I’m No Angel, 1933), no qual interpretou uma de suas empregadas. Hattie recebeu vários outros papéis não creditados, e muitas vezes aparecia cantando em coros. Em 1934, ela se juntou ao Screen Actors Guild e começou a atrair a atenção dos estúdios, passando a ser escalada para papéis maiores no cinema e a ganhar seus créditos na tela. A comédia de faroeste O Juiz Priest (Judge Priest, 1934), dirigido por John Ford e estrelado por Will Rogers, foi o primeiro filme em que a atriz desempenhou um papel importante e demonstrou mais uma vez seu talento como cantora, incluindo um dueto com o astro Rogers, que se tornaria um de seus melhores amigos.

Hattie McDaniel dá banho em Jean Parker e Marion Davies no filme Operator 13, de 1934, um de seus muitos papéis não creditados. Ao longo de sua carreira, a atriz esteve frequentemente confinada ao papel de empregada doméstica por causa de sua raça.

Hattie McDaniel com Shirley Temple em A Mascote do Regimento, de 1935.

A Fox contratou Hattie McDaniel para aparecer como Mamãe Becky em A Mascote do Regimento (The Little Colonel, 1935), estrelado por Shirley Temple e Lionel Barrymore, um de seus muitos papéis como serva e que explorava o estereótipo racial que perseguiria sua carreira em Hollywood. A atriz passou a ter papéis de maior destaque, mas sempre como uma empregada desleixada ou faladeira, como em A Mulher Que Soube Amar (Alice Adams, 1935), dirigido por George Stevens, produzido pela RKO Pictures, onde ela irritou o público sulista branco porque roubou várias cenas da estrela do filme, Katharine Hepburn. Hattie apareceu em um papel cômico como empregada doméstica ao lado de Jean Harlow em Nos Mares da China (China Seas, 1935), no qual também atuou Clark Gable, com quem Hattie estabeleceu uma amizade que durou até o fim da sua vida, e como a empregada Isabella em Murder by Television, estrelado por Béla Lugosi, também de 1935.

Hattie McDaniel apareceu não creditada na comédia romântica Que Papai Não Saiba (Vivacious Lady, 1938), estrelado por James Stewart e Ginger Rogers e teve um papel de destaque como Queenie na adaptação cinematográfica do musical Show Boat, de 1927, O Barco das Ilusões (Show Boat, 1936), que James Whale dirigiu para a Universal Pictures, estrelado por Allan Jones e Irene Dunne. No filme, ela canta um verso de “Can’t Help Lovin’ Dat Man” com Irene Dunne, Helen Morgan, Paul Robeson e um coro negro, além de um número com Robeson em “I Still Suits Me”, uma das três novas canções escritas especialmente para o filme pelos autores da peça Jerome Kern e Oscar Hammerstein II. Depois de Show Boat, Hattie teve um papel importante na comédia Saratoga (1937), da MGM, estrelado por Jean Harlow e Clark Gable, e apareceu não creditada na comédia Nada é Sagrado (Nothing Sacred, 1937), estrelada por Carole Lombard e Frederic March. Ela teve papéis de destaque na comédia maluca Quando Elas Teimam (The Mad Miss Manton, 1938), estrelada por Barbara Stanwyck e Henry Fonda, além do drama Stella Dallas, Mãe Redentora (Stella Dallas, 1937), estrelado por Barbara Stanwyck, e do romântico O Último Beijo (The Shopworn Angel, 1938), com Margaret Sullavan e James Stewart.

Em uma foto publicitária de O Barco das Ilusões, de 1936, Hattie McDaniel aparece ao lado dos atores Irene Dunne, Paul Robeson e Helen Morgan.

Hattie McDaniel e Paul Robeson no musical O Barco das Ilusões, de 1936.

Em 1937, Hattie McDaniel era a atriz preferida dos estúdios para interpretar empregadas cômicas e atrevidas, papéis que eram geralmente considerados “derrogatórios e servis”. Ela foi criticada por membros da comunidade negra por aceitar esses papéis em vez de usar seu prestígio em tentativas de abalar o barco de Hollywood ao aumentar a consciência negra sobre sua importância na indústria. Mas depois de anos de lutas e incertezas, Hattie era pragmática: “Posso ser uma empregada doméstica por US$ 7 por semana ou posso interpretar uma empregada doméstica por US$ 700 por semana”. Nesse mesmo ano, o produtor David O. Selznick estava selecionando atores para o elenco de sua superprodução épica sobre a Guerra Civil americana E o Vento Levou.

Um dos papéis mais importantes na história era o de Mammy, a babá da fútil e mimada Scarlet O’Hara, e que embora fosse uma personagem coadjuvante, requeria um tempo de tela considerável em um filme cuja projeção final acabaria chegando a quase quatro horas de duração. A seleção que decidiria que atriz faria a personagem foi quase tão concorrida quanto aquela que selecionou Vivien Leigh como a protagonista Scarlet O’Hara, a ponto de a primeira-dama Eleanor Roosevelt escrever a Selznick pedindo que sua própria empregada, Elizabeth McDuffie, recebesse o papel. Teria sido Bing Crosby, um dos bons amigos de Hattie e que a havia visto atuar como Queenie em Show Boat, quem sugeriu o nome dela a Selznick para interpretar Mammy. Uma outra fonte afirma que Clark Gable, que já havia trabalhado anteriormente com Hattie, foi quem recomendou que o papel fosse oferecido a ela. A atriz foi para o teste vestida com um autêntico uniforme de empregada e acabou conquistando o papel.

Hattie McDaniel com Olivia de Havilland e Vivien Leigh em E o Vento Levou.

Desde o momento em que seu nome foi anunciado no elenco de E o Vento Levou, Hattie McDaniel enfrentou duras críticas de membros da comunidade negra. “Estamos orgulhosos pelo fato de Hattie McDaniel ter conquistado o cobiçado papel de ‘Mammy’”, escreveu o influente Earl Morris no The Pittsburgh Courier. “Significa cerca de US$ 2.000 para a Srta. McDaniel em promoção individual… [e] nada em promoção racial”. A produção, porém, seguiu em frente, apesar de tumultuada, problemática e cansativa. Os atores negros do filme se reuniam em torno de Hattie, que assumiu um papel de matriarca, e se apoiavam reciprocamente ao longo das filmagens. Selznick usou a figura da atriz para tentar acalmar os ânimos de líderes negros dos direitos civis, que temiam que o filme promovesse ainda mais os estereótipos racistas ao explorar temas como escravidão e guerra civil. “Não se preocupem”, ela teria dito, de acordo com um comunicado de imprensa do estúdio. “Não há nada neste filme que prejudique pessoas de cor. Se houvesse, eu não estaria nele.”

Quando sua colega de elenco Butterfly McQueen se rebelou contra a personagem humilhante que interpretava no filme, a serva Prissy, intencionalmente falhando nas falas e exigindo que a estrela Vivien Leigh se desculpasse após um tapa que lhe deu durante uma cena, Hattie McDaniel aconselhou que ela fosse mais cautelosa: “Você nunca mais voltará a trabalhar em Hollywood se você reclamar demais”. Durante a produção, Selznick percebeu que Hattie era um dos destaques do filme e teria sugerido aos escritores que desenvolvessem mais cenas com a atriz dando-lhe maior protagonismo. Por conta disso, várias cenas do filme são narradas sob o ponto de vista de Mammy e a personagem funciona como um elo entre as diferentes épocas em que se passa a ação, permitindo que as cenas evoluam de maneira fluente ao longo de quase quatro horas de filme.

Hattie McDaniel com Vivien Leigh em E o Vento Levou.

Selznick também pediu que Hattie McDaniel tivesse permissão para comparecer à badalada estreia de E o Vento Levou no Loew’s Grand Theatre na Peachtree Street em Atlanta, no estado da Geórgia, na sexta-feira, 15 de dezembro de 1939. A MGM o aconselhou a não fazê-lo, por causa das rígidas leis de segregação da Geórgia e por temer que a presença de Hattie pudesse insuflar o ódio da Ku Klux Klan com mais ameaças à vida da atriz. Clark Gable também ameaçou boicotar a estreia em Atlanta, a menos que Hattie McDaniel tivesse permissão para comparecer, mas a própria atriz o convenceu a comparecer de qualquer maneira para que a carreira dele não fosse prejudicada. O evento foi de tal maneira grandioso que o governador decretou feriado estadual, a única vez na história em que um feriado foi criado por ocasião da estreia de um filme. O Prefeito de Atlanta programou três dias de festividades e relatos de jornais afirmaram que um fluxo de mais de um milhão de pessoas dirigiu-se à Atlanta, então com apenas 500 mil habitantes na época.

Hattie McDaniel com o amigo Clark Gable, que ela conheceu durante as filmagens de Nos Mares da China, de 1935, em uma cena de E o Vento Levou.

Restou a Hattie McDaniel o consolo de receber um telegrama da autora de E o Vento Levou, Margaret Mitchell, dizendo: “Gostaria que você pudesse ter ouvido os aplausos”. Embora as leis de Jim Crow – que impunham a segregação racial no sul dos Estados Unidos e que vigoraram entre 1877 e 1964 – impedissem a atriz de ir à estreia do filme em Atlanta, ela compareceu à estreia de E o Vento Levou em Hollywood, em 28 de dezembro de 1939. “Eu amei Mammy”, disse ela ao falar à imprensa sobre a personagem. “Acho que a entendi porque minha própria avó trabalhava em uma plantação não muito diferente de Tara”. A façanha de Hattie McDaniel e sua vitória histórica, porém, acabaram se tornando um fardo extra para a atriz. Ao mesmo tempo em que ela lutava por papéis melhores e tentava usar o prestígio para trazer mais artistas negros para a luz dos refletores de Hollywood, ela era frequentemente hostilizada não só por uma parte racista da sociedade americana como também por membros da sua própria comunidade.

Alguns ativistas sentiram que Hattie McDaniel não apenas aceitava de bom grado os papéis subservientes que eram oferecidos a ela nos filmes, mas também em suas declarações à imprensa ela aparentemente concordava com os estereótipos de Hollywood, fornecendo ainda mais combustível para os críticos e aqueles que lutavam pelos direitos civis dos negros. Eles acreditavam que E o Vento Levou celebrava o sistema escravocrata e condenava as forças que o destruíram. Para eles, o prêmio único que a atriz ganhou sugeria também que apenas aqueles que não protestavam contra o uso sistêmico de estereótipos raciais por Hollywood poderiam encontrar algum trabalho e sucesso na indústria do cinema.

Notícia de um jornal  dois dias após a vitória de Hattie McDaniel no Oscar mostra uma foto da atriz recebendo seu prêmio das mãos de Fay Bainter e resumindo a sua conquista: “A srta. McDaniel é a primeira de sua raça a vencer um Oscar.”

Hattie McDaniel posa com sua placa de Melhor Atriz Coadjuvante, concedida no 12º Banquete Anual da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, por sua atuação como Mammy, em E o Vento Levou.

Em seu curto e emocionante discurso de agradecimento ao receber o Oscar de Atriz Coadjuvante por sua atuação como Mammy, Hattie McDaniel disse: “Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, colegas da indústria cinematográfica e convidados de honra, este é um dos momentos mais felizes da minha vida e quero agradecer a cada um que participou na minha escolha para um dos seus prêmios; pela sua gentileza que me fez sentir muito, muito humilde. E sempre o considerarei como um farol para qualquer coisa que eu possa fazer no futuro. Espero sinceramente ser sempre um crédito para minha raça e para a indústria cinematográfica. Meu coração está cheio demais para dizer como me sinto e posso apenas dizer obrigado e que Deus os abençoe.”

Direitos civis e carreira posterior

Durante o período da Segunda Guerra Mundial, Hattie McDaniel continuou atuando no cinema ao mesmo tempo em que se unia aos colegas de tela nos esforços de guerra e seguia suas batalhas pessoais em defesa dos direitos dos negros. Em uma reunião da NAACP (National Association for the Advancement of Colored People ou traduzindo Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor) em 1942 no escritório de Los Angeles, e na frente de 10.000 delegados – incluindo Hattie McDaniel – o chefe nacional da NAACP, Walter White, estava no palco com a recém-chegada à Hollywood Lena Horne, convencionalmente bonita, culta e uma negra de pele clara, que ele acreditava ser a estrela de cinema negra moderna e ideal – um conceito formado, em parte, pelo classismo dentro da própria comunidade negra. Em seu discurso, ele explicou que vinha negociando diretamente com os estúdios para mudar os papéis disponíveis para atores negros em Hollywood.

A fala de White irritou profundamente Hattie, que acreditava que deveriam ser os próprios atores através do Black SAG que deveriam negociar diretamente com os executivos dos estúdios e não a NAACP ou o próprio White. “Não tenho nenhuma briga com a NAACP ou com membros que se opõem aos papéis que alguns de nós desempenhamos, mas naturalmente me ressinto de ter sido completamente ignorada na convenção”, disse ela: “Lutei por 11 anos para abrir oportunidades para o nosso grupo na indústria e tentei refletir o crédito sobre minha raça, em conduta exemplar dentro e fora da tela”. A atriz ficou profundamente desapontada com a forma manipuladora e degenerada com a qual White conduziu a reunião, sendo ela a única atriz que ele convidou diretamente apenas com a intenção de deixá-la de fora das negociações com a única intenção de humilhá-la.

Hattie McDaniel com Olivia de Havilland em Nascida para o Mal, um dos muitos filmes em que as duas atrizes atuaram juntas após o sucesso de E o Vento Levou.

A gota d’agua veio após o filme Nascida para o Mal (In This Our Life, 1942), de John Huston, no qual Hattie McDaniel faz uma performance tour de force ao interpretar Minerva Clay, uma empregada doméstica que enfrenta questões raciais quando seu filho, um promissor estudante de direito, é injustamente acusado de homicídio, uma atuação arrebatadora em um drama emocionante pelo qual ela recebeu inúmeros elogios, mas White não a procurou. Ele preferiu escrever para a colega de tela de Hattie, Olivia de Havilland, para elogiá-la pela sua atuação no filme. Ele também organizou uma reunião para a qual convidou pessoalmente Lena Horne e o irmão de Hattie, Sam McDaniell. Hattie não compareceu à reunião: “Não posso aceitar seu convite para partir o pão com Walter White”, escreveu ela em resposta ao convite da NAACP, “pois ele insultou abertamente minha inteligência”.

Enquanto Hattie McDaniel brigava abertamente com o chefe nacional da NAACP, ela trabalhava em estreita colaboração com a filial do grupo em Los Angeles para salvar sua residência em Sugar Hill e demais casas da redondeza, um bairro de imponentes casas vitorianas que se tornou uma espécie de Black Beverly Hills. Em 1945, os proprietários brancos da área começaram um lobby para tentar expulsar os residentes negros de suas casas, alegando que os chamados “convênios restritivos” os impediam de construir no bairro. A atriz assumiu a liderança na luta contra o ataque racista, organizando seus vizinhos e realizando reuniões em sua casa. Em 5 de dezembro de 1945, Hattie McDaniel e um grupo de mais de 200 apoiadores estavam no tribunal quando o advogado Loren Miller argumentou com sucesso que atos e convênios racialmente restritivos eram inconstitucionais, o que abriu a porta para o fim de tais restrições residenciais e mais tarde promoveria o fim da segregação racial nos Estados Unidos.

Hattie McDaniel, presidente da Divisão de Negros do Comitê da Vitória de Hollywood, posa para uma foto durante uma folga nos esforços de guerra.

Generosa ao extremo (ela ganhou reputação de emprestar dinheiro a amigos e mesmo a desconhecidos), a atriz era conhecida como uma ávida apoiadora do esforço de guerra e das causas negras. Durante a Segunda Guerra Mundial, Hattie McDaniel atuou como presidente da Divisão de Negros do Comitê da Vitória de Hollywood, fornecendo entretenimento para soldados estacionados em bases militares. Naquela época, as forças armadas dos Estados Unidos eram segregadas e artistas negros não tinham permissão para atuar em comitês de entretenimento para soldados brancos. Bette Davis foi o único membro branco da trupe de artistas criada por Hattie McDaniel a se apresentar para regimentos negros, com Lena Horne e Ethel Waters também participando.

Sempre impecavelmente vestida, com seus amados dálmatas por perto, Hattie McDaniel era uma anfitriã lendária. “Ela tinha a casa mais requintada que já vi na vida, a melhor de tudo”, lembrou Lena Horne. Em suas festas, seus amigos íntimos Clark Gable, Cab Calloway, Louella Parsons, Paul Robeson, Bing Crosby, Louise Beavers, Duke Ellington e Esther Williams passavam constantemente por cima das linhas que delimitavam a interação entre bancos e negros na Hollywood segregada. A casa de Hattie funcionava também como um salão onde artistas negros se reuniam para discutir causas e compartilhar ideias e opiniões e estabelecer uma resistência à dominação branca sobre seus talentos.

Hattie McDaniel com Joseph Cotten em uma cena do melodrama da Segunda Guerra Desde que Partiste, de 1942.

Hattie McDaniel com Jeanne Crain na comédia romântica adolescente Margie, de 1946, dirigida por Henry King.

A atriz continuou a fazer sucesso com o público predominantemente branco que ia aos cinemas ainda que continuasse interpretando empregadas domésticas durante os anos de guerra, como fez para Warner na comédia Assim É que Elas Gostam (The Male Animal, 1942), estrelada por Olivia de Havilland e Henry Fonda, e para a United Artists no melodrama Desde que Partiste (Since You Went Away, 1944), estrelado por Claudette Colbert e Shirley Temple. Ela também apareceu como empregada doméstica na comédia Janie Tem Dois Namorados (Janie, 1944), de Michael Curtiz, e desempenhou o papel de “Tia Tempy”, uma empregada doméstica em A Canção do Sul (Song of the South, 1946) produzido por Walt Disney.

Hattie McDaniel foi casada quatro vezes. O primeiro casamento foi com Howard Hickman, em 19 de janeiro de 1911 quando ela morava em Denver e tinha apenas 15 anos. Ele morreria três anos depois. O segundo casamento também terminou em tragédia, quando seu marido, George Langford, com quem ela se casou em 1922, morreu devido a um ferimento à bala pouco tempo depois. Em 1941, a atriz se casou com o vendedor de imóveis James Lloyd Crawford. Em 1945, ela experimentou uma falsa gravidez aos 51 anos e depois de comprar roupas de bebê e montar um berçário em sua casa, Hattie descobriu a verdade e entrou em depressão. Como a atriz nunca teve filhos, isso destruiu seu casamento com Crawford, de quem ela se divorciou no mesmo ano.

De acordo com sua melhor amiga, Ruby Goodwin, houve “anos amargos de solidão e desilusão quando Hattie acreditou que sua própria raça não apreciava sua arte”. A atriz ainda fez aparições nas comédias Mickey, de 1948, e Lua de Mel com Pimenta (Family Honeymoon, 1949), estrelado por Claudette Colbert, e no drama esportivo Flertando com a Morte (The Big Wheel, 1949), estrelado por Mickey Rooney, e que marcou a despedida de Hattie McDaniel (na foto ao lado, com Mary Hatcher) das telas do cinema. Em 11 de junho de 1949, Hattie McDaniel se casou com o decorador de interiores Larry Williams, o quarto marido da atriz.

Em 1947, Hattie McDaniel assumiu o papel-título do programa de rádio de grande sucesso da CBS, Beulah, tornando-se a primeira atriz negra a estrelar seu próprio programa de rádio ao interpretar uma alegre empregada solucionadora de problemas para uma família branca. Mais tarde, ela foi obrigada a se divorciar de Larry Williams cinco meses depois de casados quando percebeu que a união estava ficando marcada por brigas e discussões e ele passou a perturbar seu ambiente de trabalho e poderia fazê-la perder o emprego. Segundo a atriz, Williams tinha ciúmes do seu trabalho: “Cheguei a ponto de não conseguir dormir. Não conseguia me concentrar nas falas”. Hattie também estrelou a versão televisiva de Beulah, substituindo Ethel Waters após a primeira temporada, um sucesso que rendeu a ela US$ 2.000 por semana. No entanto, algum tempo depois a atriz descobriu que tinha câncer de mama. Na primavera de 1952, Hattie estava doente demais para trabalhar e foi substituída por Louise Beavers.

Hattie McDaniel em 1948 filmando Beulah, personagem que a consagrou no rádio e que ela levou para a rede de televisão ABC, tornando-se a primeira comédia de situação de sucesso da TV americana.

A piora no estado de saúde fez com que Hattie McDaniel fosse a primeira artista negra a se mudar para o Motion Picture Country Home, instituição pioneira fundada por Mary Pickford e Joseph Schenck que oferecia acolhimento e cuidados especiais a trabalhadores da indústria do entretenimento, localizada em Los Angeles, e de onde ela nunca mais saiu. A atriz, brincando, afirmou que queria que seu epitáfio dissesse: “Bem, eu toquei de tudo, menos harpa”. Hattie McDaniel queria ser enterrada no Hollywood Forever Cemetery, onde as grandes estrelas do cinema como Douglas Fairbanks e Rudolph Valentino descansavam. De acordo com a biógrafa Jill Watts, sempre realista, ela sabia que seria rejeitada porque naquela época o cemitério era exclusivo para brancos e escolheu o Cemitério Rosedale como segunda opção. Hattie logo entrou em coma e morreu em 26 de outubro de 1952. Ela foi enterrada em Rosedale – embora um cenotáfio para ela tenha sido colocado no Hollywood Forever em 1999 como uma maneira de atender ao desejo final da atriz.

Em setembro de 2023, a Academia de Artes e Ciências anunciou que iria repor o Oscar perdido há mais de 50 anos de Hattie McDaniel por uma placa idêntica a que ela recebeu em 1940 e que ficará exposta no Museu da Academia, criado em 2021, na Howard University. Somente três anos após a vitória de Hattie no Oscar, em 1943, a Academia passou a premiar os vencedores nas categorias de ator e atriz coadjuvantes também com a almejada estatueta. Em um comunicado, a Academia afirmou que “Hattie McDaniel foi uma artista inovadora que mudou o curso do cinema e impactou gerações de artistas que a seguiram” e que “temos o prazer de apresentar um substituto para o Oscar de Hattie McDaniel à Howard University. A ocasião celebrará o notável talento artístico e a vitória histórica de Hattie McDaniel.”

Fontes: Vanity Fair e Wikipedia.

Uma resposta

  1. Mario Catucci Jr. | Responder

    Parabéns por este post tão completo. A estória de vida de Hattie MacDaniell para mim era desconhecida e mostra quão importante é dar o primeiro passo para se alcançar grandes conquistas, mesmo que não sejamos nós a colher esse fruto. E por mais duro que seja.

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